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Minha mãe é alcoólatra

Este post possui a função terapêutica que a escrita me permite alcançar


A minha mãe é alcoólatra. Desde que me entendo por gente, ela sempre foi alcoólatra. Isto já trouxe muitos problemas para a família, mas vou focar na questão financeira.

Ano passado, tentando mostrar para ela que o vício só a atrapalha, optei por utilizar a abordagem através do dinheiro: “mãe, você toma 8 cervejas por dia, às vezes bem mais, mas vamos considerar 8, certo? E são dessas garrafinhas aí (long neck). Isso dá uns 50 reais por dia (considerei cada garrafinha R$ 6,00 à época). Você bebe todo santo dia, R$ 1.500,00 por mês mais ou menos somente com cerveja... Dezoito mil reais em um ano só com cerveja... Você gosta de viajar, pense no tanto que esse dinheiro lhe permitiria viajar ainda mais!”.

Ela se assustou com a cifra, ainda mais porque andava meio sem grana (como sempre). Ficou alguns minutos pensativa... para se recuperar do susto ocasionado pela consciência, abriu mais uma cerveja.

GRITOS

Eu era criança quando os gritos começaram, desconfio que eles já existiam antes mesmo de eu nascer. À época, eu não entendia muito bem o motivo, só sabia que os meus pais viviam brigando; no fim de toda discussão, meu pai gritava ainda mais alto e minha mãe chorava.

Assustado e muito pequeno, eu via o meu pai como um cara agressivo e a minha mãe como uma coitada acuada. Não tinha como ser diferente: enquanto meu pai trabalhava, minha mãe me levava aos parques e pesque-pagues e, entre uma latinha de cerveja e outra que ela tomava, ia dizendo: “seu pai é isso, seu pai é aquilo...”. Cresci assim...

... conforme fui crescendo, eu comecei a entender os motivos dos gritos do meu pai.

“Você não pode fazer mais isso, tive que ir atrás de agiota para pagar suas dívidas! Chega! Já deu! Você precisa parar!”.

A inocência da infância foi sendo substituída pela real percepção do mundo à minha volta; é aquela fase da vida em que começamos a ver que o mundo não é assim tão colorido.

Entrei e saí da adolescência vendo meus pais brigarem sempre pelo mesmo motivo: dinheiro. E o dinheiro ia sempre para o mesmo lugar: dívidas. E as dívidas eram sempre pelo mesmo motivo: álcool. O meu pai saía de casa para trabalhar às 7h e só chegava umas 20h. Exausto, ligava a TV e assistia à novela. Logo pegava no sono e descansava para repetir a exaustiva dose de trabalho no dia seguinte. Minha mãe, após brigar no trabalho e pedir demissão, ficou muitos anos desempregada.

Passou anos misturando fortes remédios para emagrecimento com álcool, surtando toda vez que tinha algum problema com o meu pai. Lembro-me de um episódio em que ela pegou as cervejas, fez uma cesta com comidas, pegou a mim e minha irmã (crianças), passou na casa do meu avô, pegou a arma dele (naquela época todo mundo tinha arma de fogo, lembra?) e, bêbada/surtada, saiu pela estrada e nos levou para uma fazenda aleatória. Estacionou o carro e nos obrigou a fazer um ‘piquenique’. Minha irmã chorava muito. “Cale a boca, menina! Vai, come aí!”. Um peão da fazenda foi ver o que estava acontecendo, minha mãe simplesmente pediu desculpas para ele e disse que entrou na fazenda errada 'sem querer'. Eu lembro do olhar deste peão: era um olhar de pena. Eu era criança, mas disto eu lembro muito bem. Ele disse que deixaria a porteira aberta para ela sair sem maiores problemas. Entramos no carro e fomos embora. Até hoje eu me pergunto o motivo da minha mãe ter levado o revólver para aquele ‘piquenique’.

VIDA BOA

Sem trabalho, sem renda. Começou a utilizar o dinheiro do meu pai para manter o vício em álcool. Meu pai, é claro, barrou como pôde. Sem dinheiro do marido, ela partiu para os empréstimos. Tinha de tudo: desde empresas-que-anunciavam-no-Faustão (eu as chamo de ‘agiotas oficiais’) até empréstimos em locais estranhos nas ruas desconhecidas da cidade (agiota tradicional). Tudo virou bola de neve – de dívidas.

À época eu era adolescente. Lembro da minha mãe dormindo até a hora do almoço, acordando só para comer e depois passando o dia bebendo. Às vezes saía pela cidade e ia passando pelos barzinhos comprando cerveja ‘no fiado’. Anos depois eu entrei em um destes barzinhos para comprar um salgado e a dona, muito educada, ‘me lembrou’ de uma dívida que minha mãe havia deixado por lá – foi vergonhoso.

Certa vez, embriagada e com ciúmes do meu pai (que participava de uma confraternização do trabalho dele que ela não quis ir), ela saiu pelas ruas da cidade atrás dele, descalça e segurando uma faca. Outra vez, ofereceu-me maconha (“quer provar?!”). Que mãe em sã consciência oferece maconha para os filhos?! Minha irmã, mais uma vez, chorou muito e jogou tudo no vaso sanitário. Já eu... nunca chorei (infelizmente). Enfim, era uma vida boa e louca – para ela. Nas palavras do meu pai: “vida de dondoca”.

Situação insustentável. O divórcio, é claro, era a saída mais racional para o meu pai. Chegamos a ter a típica conversa em família: os filhos sentadinhos na sala e os pais explicando que iriam separar. Após isso, a típica pergunta: “com quem querem morar?”. Eu me recordo que neste dia a minha irmã, um ano mais velha, chorou muito. Eu, sorri. Fiquei feliz com a possibilidade de me ver livre da minha mãe embriagada e dos gritos do meu pai ecoando pela casa.

Tudo isso fez a minha mãe ‘acordar para a vida’ e ela resolveu melhorar. Muito inteligente, estudou por apostila de banca de revistas e em dois meses estava aprovada em um bom concurso público – coisas que só aconteciam mais de 20 anos atrás mesmo. Meus pais desistiram do divórcio.

VIDA NOVA, NOVOS GASTOS

Com o passar dos anos e a ascensão na carreira de ambos, acabamos nos mudando para uma cidade muito bonita no Nordeste; uma capital com belas praias. Após um curto período de calmaria, os gritos retornaram a ecoar pela casa. Desta vez, com uma boa renda, minha mãe começou a ficar com hábitos mais ‘sofisticados’. Não mais comprava cerveja fiado nos barzinhos do bairro, passou a frequentar, todo dia após o trabalho, os restaurantes à beira-mar – aqueles mesmo com preços ‘cata-turista’, sabe? Entre filés, iscas de frango e outras deliciosas porções, ia bebendo das melhores cervejas.

Não há salário que aguente esta rotina; com o tempo, ela passou a gastar mais do que ganhava. E aí o ciclo voltou a se repetir: dívidas. Os gritos voltaram com força. O estresse voltou. Eu, já adulto, não me incomodava mais com isso: “problema deles, eles são um casal, eles que se virem”. Aprendi a ‘me blindar’. Passava o dia estudando e indo aos estágios (época de faculdade), ocupava a mente e passei a me trancar cada vez mais dentro do quarto. Houve um tempo em que eles alugaram uma belo apartamento à beira-mar para passar os fins de semana; minha mãe bebia demais e meu pai logo cansou do local e da situação, acabei morando sozinho (durante os dias da semana) durante dois anos neste apartamento - foi meu tempo de paz (e de vida mansa, confesso). Talvez por isso eu não tenha percebido muito bem o que aconteceu com o passar dos anos, mas meus pais foram brigando e se ajeitando, pagando dívidas aqui, pegando empréstimos ali... até o dia em que meu pai, muito dedicado à carreira, aposentou-se.

Sem vale refeição, PLR e outros benefícios de quem estava na ativa, a renda da casa diminuiu. Eu me recordo, nebulosamente, da minha mãe diminuindo o consumo de álcool, mas ainda ia algumas vezes aos restaurantes da orla. Imagino que eles tenham tido aquela típica conversa séria de casal antes de dormir, pois, de fato, ela melhorou por algum tempo. Os anos passaram; construíram uma casa legal em um bairro afastado e nos mudamos. Eu virei ‘adulto de verdade’; passava meu tempo trabalhando de Uber ou tentando a sorte na advocacia enquanto ia estudando em meu mestrado. Com a mudança de casa/bairro, saímos de perto dos restaurantes da belíssima orla marítima e isto refletiu no consumo de álcool por parte da minha mãe. Ela voltou a só tomar cerveja em casa após o trabalho e aos fins de semana. Lembro dela chegando do trabalho e sem nem mesmo trocar de roupa já abrindo a geladeira: o barulhinho do lacre da latinha e ela suspirando após o primeiro gole: “aaahh, que delícia!”. Após alguns anos, ela também se aposentou.

IDOSOS

Com duas boas aposentadorias e muitos anos de experiência e conflitos, os meus pais aprenderam a conviver enquanto casal do jeito deles. Minha mãe parou de fazer empréstimos, mas continua gastando boa parte do que recebe com cerveja. Meu pai parou de gritar. A vida vai caminhando desta forma. Ambos estão idosos e começaram a curtir algumas viagens pelo mundo. Tenho a sensação, enquanto filho, de que somente agora é que eles estão vivendo realmente como um ‘casal normal’, na medida da normalidade deles.

O meu pai lamenta não poder conhecer alguns países que ele tem vontade de conhecer, pois “lá não pode consumir álcool abertamente – e sua mãe não quer viajar pra lá”. Minha mãe adotou uma estratégia peculiar para lidar com a necessidade de idas constantes ao banheiro por causa da cerveja: fralda geriátrica. Ela não precisa (saúde está ok), mas quando vai viajar, utiliza. Desta forma, ela pode beber “a cervejinha” dela em paz e sem se preocupar em achar banheiro nos locais turísticos. Envergonhada dessa estratégia, ela chama a fralda geriátrica de “acessório”.

Aposentada e recebendo um bom dinheiro-extra via herança, hoje ela começa a beber logo que acorda – e só para quando vai dormir, não sem antes levar um copo Stanley cheio de Heineken bem gelada a para o criado-mudo ao lado da cama. E é isso, quase R$ 18.000,00 por ano somente com cerveja (nem entro no mérito dos petiscos). E sempre reclamando por estar sem dinheiro, sempre contando com a ajuda do meu pai para ‘cobrir as coisas’.

Parei de me preocupar com a saúde dela – tenho minha vida e meu filho para cuidar. Como ela mesmo diz: “cada cachorro que lamba sua caceta”.


Tudo isto, associado ao meu antigo vício por junk food, fez-me refletir sobre como os vícios são cruéis para o bolso. Claro, para a saúde e o convívio social também, mas na pegada deste blog (finanças), eu me questiono: quanto eu poderia ter poupado/investido se eu não tivesse passado anos torrando tudo com junk food? Como a minha mãe estaria hoje, financeiramente falando, se tivesse poupado/investido todo o dinheiro que ela transformou em gotas de álcool durante toda a vida dela?